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Escândalo na Saúde: cidades com 0,14% de casos obtêm 93% da verba pós-covid

De acordo com dados do SUS, Pedreiras, que tem 39,2 mil habitantes, diz ter realizado 138.377 terapias de reabilitação de janeiro a agosto deste ano

Pelas ruas estreitas e, na maior parte das vezes, sem asfalto de Pedreiras, no interior do Maranhão, não há morador que diga ter passado pelo chamado tratamento pós-covid — um procedimento definido pelo Ministério da Saúde que inclui acompanhamento dos que foram infectados pelo novo coronavírus para que não tenham sequelas da doença.

Pedreiras tem 39,2 mil habitantes e 6.701 casos de covid registrados desde 2020. De acordo com dados do SUS (Sistema Único de Saúde), o município diz ter realizado 138.377 terapias de reabilitação de janeiro a agosto deste ano — o que daria quase 9 sessões para cada habitante e 21 para cada caso da doença registrado na cidade.

É uma disparidade gigantesca se comparada com os tratamentos do restante do Brasil. O escândalo faz com que Pedreiras e outras 18 cidades do interior do Maranhão, uma região que registrou apenas 0,14% dos 34 milhões de casos de covid da pandemia, totalizem 1,1 milhão de atendimentos pós-covid no ano, enquanto todo o resto do Brasil notificou 200 mil terapias.

A cada atendimento relatado por um município ao SUS, a administração local recebe R$ 21,69 automaticamente. Por se tratar de uma novidade, sem série histórica, não existe um limite para isso, diferentemente de procedimentos como arrancar dentes.

Em julho desse ano, uma reportagem da revista Piauí mostrou que Pedreiras informou ter feito, em 2021, um total de 540,6 mil extrações dentárias, quatro vezes mais que toda a cidade de São Paulo. Para o município maranhense, isso significaria a retirada de 14 dentes de cada morador.

No caso da covid, o município informa a quantidade de atendimentos, por meio de um boletim com dados sobre os pacientes, e recebe por isso sem que o ministério tenha uma comprovação de que o tratamento foi realizado.

Um documento interno do Ministério da Saúde, obtido pelo UOL, relata “evidências das anomalias e distorções” nesses atendimentos e revela que o Maranhão recebeu R$ 19,7 milhões entre janeiro e maio deste ano para terapia —ou 93% do total (R$ 21,1 milhões) repassado para todo o país. A campeã é Chapadinha, uma cidade de 80 mil habitantes que teve 206.920 atendimentos pós-covid entre janeiro e junho.

O Ministério Público Federal investiga o escândalo em 33 municípios do Maranhão por suspeita nesses repasses. A Justiça já bloqueou dinheiro da Prefeitura de Mata Roma.

“Tem municípios maranhenses que gastaram mais do que estados inteiros. Só isso já é um indício de irregularidade”, afirmou Juraci Guimarães, procurador que coordena o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) no Maranhão.

“Nunca vi nem ouvi falar”

Falta de ar e cansaço são algumas das sequelas da covid-19 sentidas pela professora Marineide Bezerra desde maio de 2020, quando contraiu a doença.

Ela e toda sua família pegaram a covid. Ela diz ter sentido quase todos os sintomas da doença. Seu pai morreu em razão da infecção, assim como outros 688 mil brasileiros desde o início da pandemia de coronavírus, em março de 2020. Marineide mora na zona urbana de Pedreiras, trabalha como servidora e cuida da sua casa. Desde que pegou covid sente cansaço e dores de cabeça que dificultam seu dia a dia. Nunca passou por um tratamento próprio para a reabilitação de covid-19.

“Sempre vou ao postinho mas não temos um acompanhamento pós-covid aqui. Toda minha família tem sequela”, diz Marineide Bezerra, moradora de Pedreiras.

Ela não é a única no município a desconhecer o procedimento implementado pelo SUS neste ano. A reportagem do UOL circulou por sete unidades de saúde de Pedreiras, onde conversou com pacientes à espera de atendimento, atendentes e profissionais de saúde.

Ninguém tinha conhecimento sobre o tratamento de reabilitação que indica o escândalo no interior maranhense. O UOL encontrou o diretor do Hospital Geral de Pedreiras, Alessandro Tomahawk, em seu local de trabalho. Ele não quis conceder entrevista e pediu que a prefeitura fosse procurada.

Depois, a reportagem chegou a um posto de saúde no povoado de Pau D’arco. Só então uma atendente afirmou que existia ali tratamento para pós-covid. No entanto, nenhum paciente desse tipo de terapia foi encontrado no dia da visita.

O que disse Pedreiras?

A Secretaria de Saúde de Pedreiras afirmou ao UOL que o município faz diversos atendimentos para reabilitação de covid-19, inclusive para pacientes oriundos de outras 12 cidades da região.

O assessor especial da pasta, Ivan Lima, diz que um paciente pode passar por vários tratamentos, como uma visita ao pneumologista, outra ao nutricionista e até mesmo a um psicólogo, e que cada um desses vai contar na tabela do SUS como um atendimento diferente.

“Pedreiras é um centro de atendimento”, disse Lima em conversa na Secretaria de Saúde. “São 13 municípios, cerca de 250 mil habitantes.”

“Um único paciente pode passar por até 20 atendimentos de pós-covid.”

Lima justificou a disparidade dizendo que, principalmente no início da pandemia, não havia testes suficientes para se comprovar a doença, gerando muitas subnotificações. A regra do SUS para os atendimentos, no entanto, determina que é necessário comprovar que a pessoa teve a doença.

A Prefeitura de Chapadinha, em primeiro lugar no ranking nacional de repasses, também respondeu à reportagem com a justificativa de que é possível realizar até 20 atendimentos por mês para uma única pessoa. A prefeitura disse ainda que o dado do IBGE sobre sua população (83.108) é defasado e que eles têm uma estimativa de 100 mil habitantes até 2023.

A reportagem procurou o Ministério da Saúde, que disse que o caso foi encaminhado ao Ministério Público Federal. “Recentemente a pasta instaurou auditoria para apurar possíveis irregularidades de inserção de dados em municípios do estado do Maranhão”, afirmou.

Servidores desconhecem tratamento. Agente de combate a endemias e conselheiro municipal de Saúde, Marcos Vale diz ter ouvido muitos relatos de pessoas com sequelas da doença em Pedreiras. “Pessoas disseram para nós que nunca mais foram as mesmas depois da covid”, afirmou. “São problemas respiratórios, cardíacos, reclamam de dores nas pernas e nunca mais conseguiram ter uma vida normal.”

Em seu trabalho, Marcos Vale visita 758 residências da cidade a cada dois meses. Diz que nunca viu ninguém ter sido submetido ao tratamento pós-covid.

Uma outra agente de saúde da cidade, que pediu para ter sua identidade preservada por medo de represálias, deu um relato parecido com o do colega. “As pessoas não estão sendo informadas sobre esse tratamento e nunca foi repassada informação para nós também”, disse. Ela é responsável por visitar e avaliar a situação de 125 famílias mensalmente.

Vítima da covid, o casal Maria dos Prazeres, 87, e Francisco Soares, 88, tem sofrido com as sequelas da doença, após ter ficado dez dias internado em janeiro de 2021. O casal passou os dias juntos no hospital e viu sua saúde já frágil piorar após a infecção.

Eles moram no centro de Pedreiras e dividem a casa com alguns dos filhos e netos. Maria já não escuta muito bem e precisou da ajuda da filha para conversar com a reportagem.

São dores de cabeça, tosse seca, entre outros males. A família conta que os idosos são atendidos por médicos do município, mas não são tratados pelos sintomas da doença. São feitos hemogramas e exames de rotina, como o de colesterol, típicos da idade.

A filha deles, a aposentada Francisca Leila, também vítima da covid, diz sofrer com dores de cabeça. “Já procurei o postinho, mas só passaram dipirona”, diz ela.

Camila Turtelli e Eduardo Militão
Do UOL, em Pedreiras (MA) e em Brasília

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