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MÁTRIA: O AVESSO SAGRADO DE LAÍS ROMERO

O livro Mátria, de Laís Romero, está impresso. Ela fez lançamento na livraria Martins Fontes, em São Paulo, e se prepara para lançá-lo em Teresina, em julho e agosto. Por que a poeta escolheu esse título? Só lendo para saber, mas, mesmo não lendo, podemos intuir, pois a palavra remete ao ventre da terra. Dizem que é um neologismo, criado em oposição a pátria, e isso carrega significância social e histórica.

É um “livro corpo”, a própria autora o diz. Essa radicalidade é o ponto de partida. Não sei se porto de chegada. É preciso ter coragem para dedicar um livro de poesia ao corpo, ou melhor, “ao meu corpo”:

Meu corpo encontrou um ritmo

meu corpo abrigo

país dos meus filhos

meu corpo ferido frio

corpo dormindo

capataz dos meus delírios

Mesmo tendo encontrado o ritmo, a poeta sabe que o corpo carrega feridas: é um corpo marcado para viver e morrer. Quem sabe, ressuscitar, por encontrar em si mesmo os “mapas de retorno”. O poema Herança reconhece duramente esse legado:

Um corpo marcado

herda sintomas de abandono

herda silêncios e ausências

herda falhas e saudades

herda tristeza

              cicatrizes em alto relevo

                      desconcertantes

mapas de retorno

É certo que a mulher tem ressentimentos que despontam do percurso histórico da raça humana, que ainda hoje mata mátrias e finca pátrias. Mas isso não é a motivação da escrita. Por que então a poeta escreve?

Surpreendida pelo olhar do abismo

escrevo

Num grave arrebatar

assisto

ao enlevo de mútuas mágoas

persistindo na metáfora

do grito, do altar, do medo.

São várias no livro as alusões metapoéticas. Em um poema sem título, a autora é humilde ao achar sua poesia pequena, porém está disposta a correr todos os riscos, em um feito “irresponsável de mulher”:

Esta poesia tacanha se arrisca

vai sozinha às ruas

metafísica de garagem

feito irresponsável de mulher

Uma poesia tímida e vadia

que se arrisca

Há fogo e valsa nestas linhas

O feito poético de Laís Romero está ancorado na tríade Desejo, Mátria e Pathos. Em Desejo, como o nome sugere, os poemas têm o pulsar do corpo, não veículo desgovernado, mas corpo como potência do existir, para a qual é necessário o Percurso do silêncio, poema em que celebra “O nervo nu lambido / nervo nu tocado”. Em Estudo nº 7, ela diz: “Dos teus duros olhos de âmbar / escapa a minha dança / e sobram outros segredos”, para deixar claro que um corpo não faz nada sozinho e não é assim tão primário. É um corpo poético, sem deixar de ser físico. Por isso, é inevitável que no jogo com o Outro (corpo) brilhe a ambiguidade do discurso nas linhas de fogo, como em Tabuleiro, onde o amor pode ser também um jogo guloso:

A depender da partida

vou comer suas peças

pelo pescoço, pelos pés

para depois fazer a dama

cansada do jogo

Na unidade poética que as linhas do livro vão tecendo, Tabuleiro guarda similitude e complementariedade com um poema sem título, em que o toque e o olhar já não têm pertencimento a um ou a outro e se transformam em Verbo:

São teus dedos os meus

São teus olhos a mim

São meus verbos

um peso no ar

O amor erótico é capaz de construções sugestivas: “gastei o mar inteiro / na tua boca”. E a aparente calma pode guardar um animal arisco, em que, de repente, a anatomia fica louca: “pedaços violentos de verbo / se levantaram de meus cabelos / enquanto deitada em teu regaço”.

Quando entra em Mátria, a língua prossegue a busca pela palavra, “saliva, sede, água”, numa linguagem que já criou sua identidade em poemas de linhas curtas, afiadas como flechas, pois assim é a expressão lírica da autora. O poema Mátria é quase um manifesto, mas é também um poema curto, pois a poética de Laís Romero não comporta grandes arroubos verbais. “Ainda há o ritmo / em meu corpo endurecido”, ela diz. “Coragem, eu insisto”.

Eu insisto, leitor: o fio condutor deste livro é a poesia, que tem o  preço de quem veste a camisa e vai à luta, sozinha, mesmo que tenha que apanhar por ela, a poesia. Ambivalente, como lhe convém: apanhar da vida e do ato (im)próprio de fazer poemas:

Todos os dias

um poema novo

me move

e eu

apanho

na cara

eu apanho eu apanho

a—p—a—i—x—o–nada

Mátria não é nenhuma utopia, nem podia ser. Nela se impõem muitas coisas para salvação da pátria, entre elas, o trabalho não pago, as tarefas domésticas acumuladas, a falta de tempo para o desejo, os blocos de concreto armado que não permitem a ousadia da distração… Impossível não lembrar do Matriarcado de Pindorama e de como essa ideia é seminal na obra de Oswald de Andrade e da marcha das utopias, nome, aliás, de um ensaio do escritor paulistano.

Na Mátria de Laís Romero, há ditos fortes: “Fogo de vela e delírio / consumiram a mentira”. Parece que a mulher, que se emancipa da menina catequisada, está pronta para o combate nu. Por isso, “Verteu no beijo a denúncia / De corpo em riste / Humana carne / Ardeu no fogo da perpétua ave / Espírito Santo / Amém”.

Beijo e corpo heréticos, libertários, denunciam o choro das mães que procuram os filhos perdidos, com seus corpos triturados na “máquina de moer gente”, que é a pátria, reduzidos a Carne barata, outro poema incômodo de Mátria:

Com as pernas enfiadas no mangue

mulheres mães em lentidão

avançam

em busca daqueles que

um dia nutriram tantas

vezes limparam

choraram juntos os dias difíceis

Aqueles mortos-vivos

reduzidos a bandidos

Seus meninos

Seria egóica a voz fundada no ser que deseja afirmar-se apenas no discurso poético do corpo. No exemplo acima, como em outros, ressoa uma voz coletiva, presente de forma concentrada em Inimigo venal, poema que é um escrito indignado sobre “o meu país”, cada vez mais distante da humanidade:

Levei trinta e tantos anos

para construir ideia

para entender pessoas

para constatar a farsa e

atuar meu papel

pardo

nordestino e calado

de mulher.

Nesse combate nu, o poema é a melhor trincheira:

Redijo meu poema

último lugar possível

arredia e valente

igual à ancestral

capturada para casar

e de sucessivos estupros

fazer brotar

o meu país

Em Elegia: indo para o leito, o poeta inglês John Doone afirma que a mulher é um “livro místico”. Mas ele próprio celebra o corpo no mesmo poema. Walt Whitman faz o mesmo. No meio da luta brava, há em Mátria o “ansioso desejo / só nosso / de Eternidade”. Desconfio que fratria é seu porto de chegada. Parafraseando-a, o avesso sagrado dos homens.

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