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Babaçu Lâmina: 39 Poemas Feito Facas

Na conferência Poesia e Composição – A inspiração e o trabalho de arte, pronunciada na Biblioteca do Clube Brasileiro de Poesia, em 1956, João Cabral de Melo Neto afirmou que “cada poeta tem a sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra”. O poeta pernambucano achava que a literatura praticada na época havia substituído a preocupação em comunicar-se pela preocupação em exprimir-se. Em 1947, Péricles Eugênio da Silva Ramos, outro representante da chamada Geração de 45, acusou o modernismo brasileiro de ser “uma aventura sem disciplina”.

Passadas tantas décadas, tais afirmativas são hoje mais bem avaliadas e compreendidas. A “aventura” modernista produziu, por exemplo, um Oswald, um Mário. E João Cabral foi “a voz inovadora de 45”, referenciada até mesmo pelos concretistas. Quem falou algo importante relacionado a isso foi Manuel Bandeira. Aludindo ao verso livre, ele afirmou que, por não usar apoio rítmico, o verso livre poderia confundir-se com a prosa rítmica, “se não houvesse nele a unidade formal interior”. Essa “unidade formal interior” dá muitos panos para as mangas. Não está no escopo deste texto esmiuçar. Melhor considerar verso livre como sendo verso livre mesmo, com seu sentido multifacetado.

Essas observações me ocorrem agora a propósito da leitura da coletânea babaçu lâmina 39 poemas, publicada em 2019, pela editora Patuá, reunindo poetas do Maranhão, Piauí, Pará e Bahia, organizada por Carvalho Junior. Tais giros decorrem da minha incapacidade de me situar ante a poesia lírica publicada atualmente no Brasil. Como o contista João Antônio afirmou em relação à explosão do conto na década de 1970, creio que da quantidade se chega também à qualidade. A incursão sob viés um tanto formal não é porque considere esse aspecto mais importante que os outros, mas apenas uma maneira de me aproximar das 39 lâminas de babaçu.

Na apresentação do livro, Ricardo Nonato também invoca João Cabral de Melo Neto para afirmar que o que o leitor vai folhear são “formas que reverberam o mundo”. A forma inconfundível é o poema: “a lâmina que fere”. Babaçu é uma metáfora criadora. O fato que lhe deu origem foi a apreensão de 39 quilos de cocaína no avião presidencial durante escala na Espanha, em junho de 2019.

Só lendo os poetas para saber, de fato, em que se constituem as lâminas.  O próprio apresentador da obra comparece com o poema As Quebradeiras, numa clara alusão às quebradeiras de coco:

Um caroço de sombras

Silencia a aguda lâmina.

(…)

Coragem é enfrentar o medo

Na aparente esperança

A força do braço erguido

O babaçu livre.

(Ricardo Nonato, As Quebradeiras)

Para conquistar o babaçu livre é preciso buscar forças na dura realidade herdada dos tempos passados em que o Matriarcado de Pindorama foi propositadamente solapado, pois incompatível com o projeto, ainda em curso, de colônia. Luiza Cantanhede, outra poeta que figura no livro, sabe muito bem o que é ser nativa dos babaçuais:

Na barriga da minha

Mãe eu andava pelos

Babaçuais do Maranhão

Não conhecia ainda

A função do machado

O coco aberto e ferido

O azeite

Depois conheci

A fome e a lâmina.

(Luiza Cantanhede, Treinamento)

Babaçu livre é a senha deste livro que reúne 39 poetas para resistir, via palavra, às sombras de uma era terrível da história recente do país. Maldade e ignorância produziram estragos. Daí que o Motivo de Cecília Meireles é revisitado com desespero, que seria total não fosse o desejo de cultivar o canto profundo:

Eu canto

Porque não desejo

escravos nem mercancias

mas povoar um deserto

com braços e encontros

habitar o país inabitável:

derramar uma gota

de alegria na terra.

(Sandro Fortes, Motivo)

Por que esse lirismo desesperado? Os próprios poetas respondem, cada um a seu modo, cada um com sua poética, e aqui não importa se cada poeta inaugura nova poética. O que importa é que cada poeta empunha a palavra porque há sangue nas mãos, difícil de suportar:

Há sangue nas mãos

Que nem o esquecimento é capaz de lavar

Há sangue na memória amputada dos olhos

(…)

No entanto há vida

Nas mortes que vivem sem explicação

(…)

(Adriano Lobão, Há sangue nas mãos)

Em Peixe seco, o poeta Antonio Aílton diz que a humanidade é mais forte que peixes, ursos, moscas, mas “em toda parte, há sempre um homem para te ferrar”. Parece a realização da máxima hobbesiana: o homem lobo do homem, combustível para a mais antipoética das civilizações, para quem a humanidade aparentemente perdeu a batalha.

Para onde caminha o lirismo cortante de babaçu lâmina?

Além de participar do livro como poeta, Antonio Aílton estudou e escreveu a tese de doutorado Martelo & Flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea. Embora o autor a tenha escrito antes (2017) e se refira a outros poetas, convém consultá-la, pois nos ajuda a compreender que essa forma-lâmina tem por trás de si as experiências dos poetas que fazem parte da coletânea.

Antonio Aílton lança mão da proposta de pacto lírico desenvolvida por Antonio Rodriguez no livro Le Pacte Lyrique. Sofrimento e afetividade são fundamentais para construção do texto lírico. Parece que foi isso que aconteceu com os poetas de babaçu: sofreram e se indignaram pela situação que o país atravessava e se exprimiram com base nessa dor e no afeto que nutrem pelo país e pelo ser humano. Porém, Aílton, sem desprezar as noções de Rodriguez, vai além da afetividade e inclui a forma e a experiência. A forma está ligada, por exemplo, aos procedimentos estéticos manuseados pelos poetas. A experiência, às questões existentes entre o mundo da vida e os atos de linguagem, entre as quais as questões filosóficas, históricas, culturais etc.

Muitas coisas cabem nos poemas: fezes, martelo, flor… As subjetividades dos poetas e suas experiências no mundo trazem uma variedade enorme de coisas, memórias, imagens, espaços etc, que se trans-formam em poemas-lâminas. Para isso, utilizam o repertório dos procedimentos estéticos palmilhados pela lírica moderna e contemporânea.

Em outro texto (Da Função Moderna da Poesia), João Cabral de Melo Neto assinala que houve enriquecimento da poesia moderna na estrutura do verso, na estrutura da imagem, na estrutura da palavra, na notação da frase e na disposição tipográfica. Todos esses aspectos estão presentes em babaçu lâmina, que foi parido mais de meio século após o texto do autor de Uma Faca só Lâmina. Nos poemas de babaçu veem-se, por exemplo, fusão, desintegração e invenção de palavras, uso livre de cortes, subversão do sistema de pontuação, uso do espaço em branco da página com finalidade visual, exploração de imagens oníricas e muitas outras ocorrências da poesia moderna, ainda hoje praticadas pelos poetas contemporâneos, o que mostra que o modernismo brasileiro não é um movimento que se esgota em datas.

Fascismo, do poeta maranhense Celso Borges, neste ano falecido, é um bom exemplo de como a forma do poema contempla fragmentação e fusão de palavras com intencionalidade crítica:

bolsonaro moro damares dória mourão

damoro mouranaro

bolsomares dourão

bolsomoro dorinaro

mourares damourão

momares danaro

morória bolsomourão

dadória damonaro

bolsória momorão

farinha

do

mesmo

asco

Moviemento, de Salgado Maranhão, funde e inventa palavras novas para demonstrar (ou construir com palavras uma cidade já construída no mundo da vida), uma outra paisagem escrita, “a cidade e sua íris fumeé”, usando vocábulos de três idiomas, o que lhe confere um sentido babélico, tão próprio dos nossos dias. O poema termina assim:

manhãs AR-15

tardes AK-47

delinquem entre ratos

e toletes totens

a cidade em seu afã

a comer hot-dogmas

e balas de mortelã

babaçu lâmina 39 poemas cumpre seu papel. É a voz poética multifacetada de uma era sombria da vida brasileira. A coletânea dá bem o alcance e o sentido participante. Para onde caminha a lírica errante do livro? Não sabemos. Mas compartilha o desvario e a esperança do nosso tempo, proclama babaçu livre e diz O Último Adeus, poema de Wybson Carvalho, que fecha o livro com mais uma lâmina para cortar a carne de vocês:

nas asas do tempo já cumprido

irei num voo rasante

até a parede da eternidade incerta

para descobrir o que não fui.

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