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Sarau Piranhão: Iluminado em Carne Viva!

A poesia não está só nos livros. Há deles que não tem um grama de poesia. Há outros em que a poesia é esmagada pelas palavras. Há os que tem vestígios de poesia. E há os que tem poesia. Há poesia que, indo ou não para os livros, vai para muros, camisetas, cartões postais, cartazes, agendas, recitais…

Foi o que aconteceu neste domingo, no Bar Jericoroa, na coroa do Rio Parnaíba. Poetas e um público vibrante fizeram o Piranhão, nome que não é novo, mas provocativo para um sarau poético. Feliz de quem teve a ideia e quem se incorporou a ela, tornando-a fato, ato poético.

Sarau Coroa Joao Fernanda Pohema

Antes de ser escrita, a poesia – mãe das artes – deve ter nascido falada, cantada, dançada… A poesia escrita não deixa de ser poesia. O livro ainda não perdeu a hegemonia. Mas a poesia falada tem sabor especial, por causa da voz viva, do corpo, da emoção transmitida de forma direta. E se a poesia é falada por um time de poetas, ao ar livre, fora das convenções e artificialismos das salas, amplificada é a potência das vozes poéticas, para quem as emite e para quem as recebe. E se, mais ainda, as vozes poéticas ressoam de e para pessoas que tem os pés descalços sobre a areia do rio e o peito aberto para o vento e tudo o mais, o que acontece é a comunicação vivificante entre seres humanos, que se transformam em seres poéticos.

Estávamos lá, no Rio Grande das Tapuias e dos Tapuios: as águas, o vento, as conversas, os flertes, as danças, a música e uma porção de coisas indizíveis. O cenário era perfeito para a Declaração do território Mátria, por Laís Romero, dentro da qual Inimigo venal é um poema-manifesto de uma quadra obscura, mais do que escrito, falado, vivido com indignada pulsação:

Enevoado em

doença o meu país

morre

de bala

morre queimado, soterrado

de fome

das formas mais absurdas

d i s t a n t e

da civilização

d  i  s  t  a  n  t  e

da humanidade

O país morre

na lama da demência na

maldade do cristão

arrebatado cristão branco

macho

O meu país

(…)

As poetas e os poetas só podiam estar em estado de exercer suas potências. O palco era apenas um lençol estendido sobre a areia, que poetas ampliaram, sem limites, isto é, o limite era a própria areia e a vontade de abrir o coração e a boca e soltar a voz tão necessária como a água que bebemos, ou bebíamos, desse rio.

Poetas tem nomes civis para efeitos administrativos porque seu verdadeiro e único nome chama-se poesia. Foram se sucedendo no superpalco coberto de palha do Jericoroa, anunciados pelo mestre de cerimônias não-cerimonioso João Henrique Vieira, que começou atiçando com a memória de uma pichação que ele tinha visto na rede de tantos peixes: “Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?”. Os neurônios dispararam. João sabe que

o tempo traz num sopro imortalidade

quando o bicho afaga a linguagem.

Marco Aurélio Siqueira teve a primazia de abrir o (re)encontro. Ele, que já havia publicado Poemas da Quarentena e Urano, anunciou seu novo livro, Cores de Todos os Cantos, de onde salta Buraco negro:

Aquele poema era uma página em branco

Não tinha uma palavra

Não dizia nada

Papel à espera de alguma cor

Faltava-lhe qualquer vestígio

Sob o toldo dos seus escritos

Esquecido de nenhum amor

(…)

Em 2017, ao me autografar o avesso da lâmpada, Demetrios Galvão escreveu: “a poesia é um avesso bonito que nos acende por dentro”. Essa a melhor síntese para aquele sarau incrível: poetas e público proporcionaram um “avesso bonito” sobre a areia, enquanto o sol despencava para o abismo de todas as tardes. Ele recitou rinocerontes da ternura, que começa assim:

nós, rinocerontes da ternura

nós, rinocerontes prometidos para a extinção

conhecemos bem os dragões da cidade,

os seus disfarces alcalinos, suas gírias oblíquas…

no nosso hemisfério de dentro navega uma jubarte

que nos salva dos naufrágios e do ataque do serrote.

nós, rinocerontes da última hora,

sabemos que todo pecado será abençoado quando feito com amor

(…)

Não existe pecado a cinco graus debaixo do Equador, a não ser ódio, ganância e muitos outros impublicáveis, que teimam em querer esmagar a poesia. De repente, poetas podem até sonhar, e certamente o fazem, mas não indiferentes ao sangue que escorre, muitas vezes invisível. Assim cantou Fernanda Paz, outra presença forte no Piranhão:

A carne que me veste –

fria roupa –

Soluça o sangue

Que

Escorre

Para o lado de fora

Enquanto sonho.

O poeta Paulo Machado estava aniversariando naquele domingo. Eu sabia que ele não estaria presente, por isso saí de casa com a coletânea O Rio dentro da sacola. A oportunidade de falar o poema dele sobre o Parnaíba surgiu após a linha de poetas convidados dizer a que veio. Na apresentação da segunda edição de Tá pronto, seu lobo, Aírton Sampaio o chamou “O Poeta, Visceral, de Teresina”.

preciso urgentemente escrever um poema!

que os versos sejam vorazes,

lembrando o rio de minha cidade,

comendo as pedras do cais.

mas como escrevê-lo?

como domar o rio de minha cidade

à condição de poema?

Como domar rios de poetas? Impossível. O palco recebia poetas que respiravam os ventos do Rio Punaré, outro nome do Parnaíba. Por lá passaram, além dos já citados, Ithalo Furtado, Assis Galvão, Samdra Dee, uns, umas e outras e essa moça incrível, Pohema Lima:

Porque me amando eu

não me deitaria com

quem não me amasse

igual, me amando eu

não me mataria pra

salvar a mente afogada

de amor nenhum,

não lutaria batalhas

perdidas e jamais faria

apostas falidas num

futuro tão alienado

Não chamaria de

amigos quem trai,

quem ofende, quem

mente.

Eu não me entregaria

a qualquer amor

marginal.

Eu seria eu inteira

Sem sonhar ser de

outro serviçal.

De repente, apareceu um rapaz magrinho, de fala mansa e poesia feroz, com o impresso POESIA IN.COM.PLE.TA, costurado com agulha afiada e linha vermelha: Christian de Jesus. Parecia um poeta redivivo da década de 70, de leminskiana irreverência:

Cheiro de cigarro

E de amor antigo

Tudo tão impregnado

E quando fora acesa

Essa brasa?

Quando a primeira pessoa

Desistiu de viver

E foi amar

O mundo foi tomado

Pela fumaça

Muitos que estavam no Piranhão pegaram o barco de volta quando o sol se punha. Dava, mas quase ninguém se atrevia a fazer a travessia com água imunda pela canela, os esgotos bem ali, pois é isso o que a pátria faz com os rios. No cais, párias fingiam vigiar os carros ou ficavam ali mesmo por ficar. O Troca-Troca estava imóvel com suas geladeiras enferrujadas.

Voltemos aos rinocerontes da ternura, onde Demetrios Galvão indaga:

quem dos muitos com quem bebemos

serão solidários na derradeira hora?

Digo, sem responder: quem os impregnados dessa brasa para nos iluminar em carne viva?

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