Ao autografar o livro Insólito, publicado em 2011, Demetrios Galvão escreveu na dedicatória: “Esse não é um livro de poemas. É um álbum de fotografias surrealistas”. Com isso declarava abertamente sua filiação à estética que teve na poesia muitos simpatizantes no mundo, como Baudelaire, e no Brasil, Murilo Mendes e Jorge de Lima, entre outros. Não é surpreendente que o poeta piauiense tenha construído seu livro sob essa janela de contato.
No primeiro Manifesto Surrealista, de 1924 (houve o segundo, em 1930), assinado por André Breton, há afirmações instigantes, dentro do espírito de ruptura e renovação das vanguardas que eclodiram na primeira metade do século XX. Por exemplo: “A mania incurável de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, só serve para entorpecer cérebros.” “Oxalá chegue o dia em que a poesia decrete o fim do dinheiro e rompa sozinha o pão do céu na terra.”
Em Insólito, cujo título remete ao incomum e à inadequação à tradição, a poesia de Demetrios parece inconformada com o lirismo extenuado e por isso encontra expressão no discurso poético inusual, em que a lógica previsível vai pro espaço e anda de braço com a estranheza e a deformação.
Uma crítica que se fez ao surrealismo, extensiva à poesia dita moderna (coisa multiforme demais, segundo João Cabral de Melo Neto), é a “difícil compreensão”. Parece uma poesia que não nasceu para ser compreendida. Mas isso, além de enganoso, é muito relativo: muitas vezes, o leitor, engessado em hábitos e condicionamentos, não dá conta de ler, perceber camadas, emprestar sua própria voz à comunicação autor-leitor.
Na conferência Poesia e Composição – A Inspiração e o Trabalho de Arte, de 1956, João Cabral de Melo Neto afirmou: “Cada poeta tem sua própria poética (…) Pode-se dizer que hoje não há uma arte, não há a poesia, mas há artes, há poesias. Cada arte se fragmentou em tantas artes quantos forem os artistas capazes de fundar um tipo de expressão original”.
Se, em Insólito, Demetrios Galvão abraça, com todos os riscos e vantagens, a estética surrealista, esse fato por si só, embora importante, não é capaz de definir sua poética. É preciso ver o que ele constrói em termos poéticos. Nos seus livros posteriores, a filiação surrealista está, digamos, mitigada, embora o aspecto onírico continue presente, às vezes com distanciamento crítico, sinal de amadurecimento (“inútil reconstruir as frases tingidas no sono / a vagarosa sombra que se desloca em cada sílaba sônica. / (…) / as palavras não encontram acordo / na sintaxe sonâmbula do lençol”, fragmento retirado do poema acordar, de O Avesso da Lâmpada, 2017).
No livro Reabitar, de 2019, o poeta aposta numa comunicação mais direta. O título conduz a um duplo reabitar: do ser humano no mundo e do poeta na poesia. Não só porque há talvez aqui uma poesia menos labiríntica e as linhas dos poemas tenham ganho em concisão. Os adeptos da comunicabilidade poderão dizer que o leitor pode penetrar melhor na luz e seus avessos. O próprio poeta celebra o reencontro com o humano, e aí certamente pode-se incluir o leitor com quem é possível inventar uma língua: “plantar recordações / em espaço borrado / descobrir uma língua / para o prazer do encontro”.
O percurso de Demetrios Galvão até aqui, que inclui a publicação de livros de poesia, participação em coletâneas, revistas literárias, no coletivo poético academia onírica, nas edições do blog poesia tarja preta, e como editor da revista acrobata, deu mais um fruto: seu novo trabalho é uma plaquete, A Inconstância dos Fluxos, publicado em fevereiro de 2023.
A trajetória não linear do poeta sugere uma rendição ou celebração à inconstância da vida, que dança em todas as direções. O poema de abertura de A Inconstância dos Fluxos parte de um fato aparentemente trivial: um filhote de felino repousa e lateja na palma da mão. “Uma infância se prepara para a inconstância dos fluxos”, diz o poeta, que também cogita das coisas atuais e seus espantos: “por um instante penso / na poeira cósmica que nos cobre / do nascer do mundo ao algoritmo / uma inteligência artificial / que planeja nosso futuro // esse lapso que dura / uma eternidade de incertezas / oferece margens difíceis de saber / onde pôr os pés / qual melhor forma de plantar? / para qual deus dar atenção?”.
A nova publicação possui apenas dez poemas. Parece que o poeta tinha urgência em oferecê-los ao público. Tudo está tão rápido, tão agônico, e ao mesmo tempo tão belo, eis que beleza não falta ao mundo, mesmo que reconheçamos a barbárie, que torna a poesia ainda mais necessária. Parece também que o poeta está mais tranquilo em relação às vozes que alimentam sua poesia. Mesmo que se surpreenda com “o que eu havia perdido”, ele diz em Outros Reinos e o Meu: “me acostumei / com vozes trans-oceânicas / (morfologias de outros reinos) / pareciam o suficiente / para minhas fomes”.
A fome do poeta leva-o ao conciso Noite Madura. Embora seja um poema que sugere a celebração do amor (“me alegra estar / na tua orelha / comer tuas mortes / lavar os teus pés”), a reconstrução de algo que está desorganizado (“remontar a casa / cuidar dos excessos / organizar as relíquias / impalpáveis”), o estado de alerta (“conversar com / seres invisíveis / e vagar com os olhos / bem abertos”), este poema pode fazer o leitor lembrar, de passagem, da “noite escura da alma” (San Juan de la Cruz), mas sobretudo, acho eu, da noite como fruto bendito. Na conclusão do poema, ressoa a pegada surrealista, abertíssima: “uma noite-madura / brota em nossas costas”.
O poeta, que se alegra em “lavar os teus pés”, convida para “assistir ao cinema celeste”, come “na mão da natureza”, puxa o lençol que cobre a pele grossa e diz no verso final que “o amanhã traz uma sorte desconhecida”, é o mesmo poeta diferente que guardava insólitas coleções de pedras na gaveta e fazia cartões postais do fim do mundo. Agora seu fluxo é de quem faz Um Canto na Campina:
um grão de tempo
cresce no bico
e expande uma prece
no café da manhã.