No dia 13 de março, às 20h, o Itaú Cultural (IC) abre a primeira mostra da série Ocupação em 2024 – é a 62ª do projeto iniciado em 2009. Com curadoria do Núcleo de Curadorias e Programação Artística do IC e da diretora Bia Lessa, além de pesquisa audiovisual de Antônio Venâncio, ela é dedicada a Maria Bethânia e tem como tema Bethânia e as palavras.
A força da palavra e da literatura na vida da cantora, a extraordinária presença da família Velloso, com sua fé, sua alegria, seu rigor e sua liberdade, somadas à riqueza cultural do Recôncavo Baiano, criam o universo que compõe essa mostra. O Recôncavo é uma região localizada perto de Salvador composta por um núcleo de cidades, da qual Santo Amaro faz parte, conhecida por seu sincretismo religioso, por seu apego as tradições e por ser uma região de onde saíram expoentes da cultura brasileira como Maria Bethânia, Caetano Velloso, Emanuel Araújo, Roberto Mendes, entre outros.
Lançando um olhar poético e novo sobre a vida desta baiana nascida em Santo Amaro há 77 anos, em 1946, a mostra permanece em cartaz até 9 de junho. Ela se estende do piso térreo – com 98 fotos que representam diferentes aspectos do ambiente social de onde surgiu a artista – ao primeiro andar do IC, este ocupado por uma instalação composta de 47 monitores com imagens documentais de diferentes períodos da obra e vida de Bethânia e de seu estreito diálogo com a poesia e a literatura, por meio do contato com Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar, Sophia de Mello Breyer, Arnaldo Antunes e Fernando Pessoa, entre outros. A produção tem duração de 1h45min com imagens em looping, propondo ao visitante que abandone o tempo imposto pela agitação da Avenida Paulista e se permita usufruir de um outro tempo-espaço.
Para firmar sua relação com a linguagem, a Ocupação Maria Bethânia ainda apresenta os bordados Rotas do Abismo e O Céu de Santo Amaro, nos quais a artista exprime através de linhas, agulhas e tecido sua intimidade com a palavra – dando forma ao que em sua profissão é som. Esses bordados inéditos fazem parte de uma série realizada durante a pandemia. O valor do trabalho está no rigor estético e na artesania presente em toda sua obra.
A mostra não pretende dar conta da cronologia da obra e vida da artista.
“Não queríamos fazer algo sobre momentos históricos, shows, situações já conhecidas do público. Queremos que as pessoas saiam dessa Ocupação entendendo a importância da palavra, do rigor, do valor de sua terra e seu povo para Bethânia”, explica Bia Lessa.
“O conceito da exposição está fincado na palavra como pedra fundante de Maria Bethânia. A palavra dita por outros, escolhida e redita por ela mesma ecoa no espaço expositivo e em tudo que ali é mostrado”, conta Galiana Brasil, gerente de Curadorias e Programação Artística no IC. “No térreo, as imagens são íntimas. São imagens a que não se têm acesso facilmente, carregam até mesmo o desgaste e as marcas do tempo. Já o primeiro piso apresenta um imenso trabalho audiovisual editado por Bia que transforma o visto em não visto entre múltiplas Bethânias. No conjunto, revela uma única e plena artista que se move entre as palavras, o sagrado e o profano”, completa.
“Minha expectativa é de que ela seja bonita e que os olhos que a vejam fiquem encantados, interessados e atentos aos recados”, diz Maria Bethânia para quem a mostra será uma surpresa. “Essa homenagem me comove”, conclui Bethânia.
No térreo
Há todo um cuidado artístico no modo de exibição das 98 fotografias neste piso, afinal, não se pode retratar essa artista de forma convencional. As imagens não estão fixadas nas paredes, eles flutuam pela sala suportadas por cabos de aço até a altura do público. Pendem do teto em roldanas, contrapesadas com sacos de terra que representam a de Santo Amaro e observadas na horizontal.
Há todo tipo de imagem saída de arquivos diversos, que constituem um caleidoscópio no qual vida e obra se fundem. Sua família, sua infância e adolescência, com os seus pais Dona Canô e Zezinho, com os irmãos, amigos pequenos, festas e Carnaval já em sua juventude. Além de fotos de shows – umas conhecidas do público, outras não —, têm de suas viagens, de momentos de descanso, ela em suas casas em Salvador e em Santo Amaro. Tem ela bordando, preparando Nossa Senhora da Purificação para a procissão em sua terra Natal e seguindo o cortejo a Iemanjá na capital baiana. É Maria Bethânia em sua totalidade.
Para cada imagem há uma frase, refletida no chão, criando um contraponto entre o que se vê e o que se escreve. Assim, os pensamentos de escritores, compositores e poetas – como Waly Salomão, Clarice Lispector, Álvaro de Campos e outros –, que acompanham estas imagens, dançam no solo. O ambiente é envolto em paisagem sonora que remete ao marulho do mar e à sua música, em uma atmosfera que dialoga com a carreira de Bethânia e com quem ela é pessoalmente.
A instalação pode ser observada à distância, de perto e de muito perto, permitindo ao espectador diferentes formas de apreensão. Nada é obvio na artista, nada é desvendado por inteiro, mas tudo faz parte de um único universo criado por ela a partir de sua gente.
1º Piso
Neste andar, dois bordados criados pela cantora – um de 80cm x 47cm, outro de 55cm x 35cm – recebem o visitante. Na sequência, o público entra em uma sala escura, preenchida com água em parte de sua extensão, onde 47 monitores preenchem três das quatro paredes. Uma leve brisa envolve o ambiente.
A instalação audiovisual é resultado de ampla pesquisa feita pela curadoria do Itaú Cultural e por Antônio Venâncio, com montagem de Ana Paula Carvalho e direção de Bia Lessa.
O vídeo ressalta a figura da homenageada e a palavra cantada ou falada por ela – muitas vezes ao lado de seus parceiros e amigos nas canções e poemas. O tempo todo sobressai a voz de Bethânia e sua leitura, interpretação ou canto de obras de poetas e compositores com quem ela sempre teve profunda conexão. Essas palavras compõem o que se pretende narrar. Estão presentes Waly Salomão, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Sophya de Mello Breyner, Caetano Velloso, Arnaldo Antunes, Mia Couto, Carmem C. Oliveira, Ferreira Gullar, Paulo Pinheiro, Vinicius de Moraes, José Eduardo Agualusa, Mabel Velloso, Patativa do Assaré e ela própria, entre outros.
“A palavra, para uma intérprete como eu, é fundamental. Preciso do poeta, do autor, do compositor, do letrista, o nome que se dê”, diz Maria Bethânia. “Isso porque preciso de uma leitura, preciso de uma situação, de um sentimento, de uma verdade, de um repúdio, de um elogio, uma declaração de amor. A palavra me conduz”, completa ela.
A palavra também é dona e senhora de seus bordados. “Chamar isso que faço de bordado é engraçado, é uma ofensa a quem realmente sabe bordar”, brinca para contar que esta prática foi um canal para expressar seus sentimentos e silêncios no isolamento. “Gosto de bordar palavras, de escrever com linhas, de inventar. É um desabafo, um modo de me expressar. Como artista, além do isolamento e da solidão, ser proibida e não conseguir me expressar é insuportável para mim. São bordados que se relacionam com o presente.”