No poema de abertura, que dá título ao livro Big Sentido, lançado ano passado, Durvalino Couto Filho diz:
Um Big Sentido se fez meu amigo
Aquele que relativiza minha existência.
É o sentido poético: “misterioso e torpe em sua essência”.
Aí estão senhas explícitas para se adentrar sua poesia. Além de se referir a um sentido além de olfato paladar, tato, visão e audição, a palavra também quer dizer significado, e outras coisas, daí a ambiguidade, ou plurissignificação, sem a qual é difícil se pensar em poesia, forma de percepção do mundo tão cara ao poeta. Por isso se fez sua amiga.
O fato de a poesia relativizar a existência é um dado importante como chave de leitura. Estaria o poeta querendo dizer que não é absoluto? Essa hipótese se confirma à medida que se avança na leitura do livro até o final. A materialidade do mundo diz mais ao poeta que uma essencialidade. A poesia faz mais sentido enquanto imersa nas expressões palpáveis, como o desejo e o amor erótico, do que em uma existência idealizada e sublime.
Já o termo Big, de outra língua, mas incorporado ao português brasileiro falado, denota que a poética construída em Big Sentido não tem pudores em “babelizar” a linguagem com esse e outros tipos de recursos, como colagens, justaposições, oralidade, que depõem contra estilos solenes e qualquer possibilidade de dotar o poeta de uma identidade fixa, absoluta e de elevar a poesia ao sétimo céu.
Durvalino é um poeta lírico que corre os riscos de ousadias, isso ninguém vai negar. Se formos apreciar seu lirismo sob a ótica (ou o sentido) do segundo poema do livro, A menina que passa, diríamos que é um lirismo que se eleva, pois a menina tem um ar de saudade – e que dignidade! Mas parece que o poeta é um franco atirador e seu alvo preferido são as idealizações: além das ironias, por si só demolidoras, a menina “tem ar de capeta”.
Ocorrências como essa se repetem em todo o livro. No metapoético Palavras, o autor não nega o mistério que as palavras têm – poeta nenhum nega – e até sonha com uma realidade diferente: “Ah, se as palavras fossem como o vinho que vem das uvas”. Porém logo cai na real e emenda a bonita imagem aliterativa com duas comparações do mundo prosaico das nossas dores: “se as palavras fossem fáceis de achar na cabeça / quando a amada foge ou o dinheiro míngua”.
Quase sempre arrebatado pelo desejo e pelo amor, no poema Palheiro o autor se volta para eles e questiona:
que tempo o desejo ocupa
em sua vida?
por quanto tempo fica aberta
essa ferida?
(…)
e do amor?
o que diga?
quem pensa os ferimentos
dessa fadiga?
Parecem dois polos que atraem e repelem. Desejo e amor são ímãs fortes, mas deixam feridas, cansaço, fadiga e o ceticismo, presente no já citado Palheiro (“procurar um novo amor não é direito / é uma guerra perdida”) e em tantos outros poemas. Canalha em crise é outro exemplo. E os concisos:
Depois
fomos
desfeitos
um para o outro.
Eu você nós dois
vendo a fotografia
vejo que é um belo casal
um belo casal
realmente
o amor vai acabar
mas vai valer a pena,
Mas, como quem desdenha quer comprar, o poeta acredita que o amor existe e canta sua existência em lugar comum nº 2, embora não se dê por vencido, já que a ironia do título leva, sem comiseração, ao amor-clichê. Em Deusa, acontece o inevitável, pois o poeta não é de aço, pela via do mito grego se submete como os árcades: “Sou teu pastor adormecido / e nos bosques me terás quando quiseres”. Afirma, em Aprendi a ler: “elegi-te no meu coração / vaca dos meus currais. Este poema e Deusa assinalam que até mesmo o amor (ou paixão?) pode ser relativo e oscilar de um extremo a outro.
Nesse ponto, convém falar das intertextualidades, que já eram abundantes em Os Caçadores de Prosódias, primeiro livro de Durvalino Couto Filho. Em Big Sentido, elas estão presentes, bem como as incursões ao experimentalismo poético, à poesia concreta e às propostas estéticas da Tropicália. Aqui não vai nenhuma censura, muito pelo contrário. As intertextualidades são elementos frequentes e se incorporaram como tijolos (líquidos?) da poesia e da literatura contemporânea.
Os Caçadores de Prosódias mereceu pelo menos dois excelentes artigos críticos em publicações universitárias. Edwar de Alencar Castelo Branco e Fabio Leonardo Castelo Branco Brito fazem uma “leitura histórica” daquele livro, em que a vida e a obra de Torquato Neto fazem reverberações seminais. Por sua vez, Elson de Assis Rabelo viu em Os Caçadores de Prosódias “alegorias da pós-modernidade”.
Baudelaire é o primeiro poeta referenciado na seção Big Sonetos, que também traz três sonetos espelhados em Petrarca. Aqui também o desejo é um tema quase obsessivo. As promessas do amor erótico andam de par com as agruras: “Qual mulher é esta que faz / Do prazer meu sofrimento” (Soneto). A morte, “canhota e destra”, está presente em Não adiante ensaio de orquestra. O desdém brincalhão e a ironia quebram a gravidade do tema:
Meu corpo podre vai servir de horta
Quando por fim a morte bate à porta
Mais dama singela que velha torta.
O poema de forma fixa mais famoso da literatura ocidental não tem vida fácil na poética de Big Sentido. Basta, por exemplo, um rápido exame do nível lexical dos oito sonetos, para se deparar com a intencionalidade de fazer ruir monumentalidades, hermetismos, artificialidades, que marcam boa parte da produção de sonetos entre nós. Ditos populares, gírias e outras palavras da linguagem oral trazem a vida “ao rés do chão”, para usar expressão de Antônio Cândido em excelente artigo, não sobre poesia, sobre crônica.
Big Fesceninos reúne poemas eróticos mais afoitos. Diz o dicionário que fescenina é a “poesia grosseira e licenciosa que os romanos importaram de Fescênia, cidade da Etrúria”. Oportuno lembrar Carlos Drummond de Andrade, que também praticou a poesia erótica e é uma das referências de Torquato e Durvalino:
Oh! sejamos pornográficos
(docemente pornográficos).
Por que seremos mais castos
Que o nosso avô português?
Oh ! sejamos navegantes,
bandeirantes e guerreiros,
sejamos tudo que quiserem,
sobretudo pornográficos.
Os poemas da seção Big Visuais assinalam a produção do autor mais afinada explicitamente com o experimentalismo poético e as vanguardas, da poesia concreta às experiências das décadas de 60 e 70 do século passado, como a Tropicália. Desestruturação do discurso verbal, atomização das palavras, rupturas com a tradição, incorporação de elementos da vida urbana moderna, fragmentação da realidade com intencionalidade crítica e estética etc. Verbivocovisual, uma das designações encontradas na teorização da poesia concreta, pode ser mencionada aqui na apreciação das tentativas bem-sucedidas de ressignificações, através de experimentos radicais com as palavras.
Big Outros é a parte de Big Sentido em que o autor relativiza sua existência como poeta. Queremos dizer com isso que recolhe referências e influências e transita à vontade num amplo espectro de leituras e releituras que imprimem continuidade à poética iniciada em Os Caçadores de Prosódias.
Essa poética não-absoluta se constitui e se nutre do Outro, que não são apenas os autores caros ao poeta, mas também o ressoar histórico global de grandes transformações, onde se incluem as mutações da linguagem, para as quais o poeta está com sua antena sempre a capturar códigos e sinais para com eles construir artefatos poéticos. Isso contribui muito para as leituras, entre tantas possíveis, e “vastos mundos interpretativos”, como afirmam Manoel Ciríaco e Feliciano Bezerra, respectivamente, no prefácio e na orelha de Big Sentido.
Parece aqui que a potência poética está em casa, como demonstra Adver, poema inicial de Big Outros, uma cidade imaginária, intransferível, sem endereço. Mas cuidado: Adver não é Pasárgada, não é utopia, embora não exista polícia (“nem precisa / cada um é seu algoz”):
Nasci em Adver
Na Rua da Criação
Sem número
Adver é plano piloto de mim
Não por acaso, o plano piloto do poeta é a Rua da Criação, sem número. Sua poética não pode ser apreendida por conceitos fixos que a tradição engendrou, a mesma tradição que legou o “fim das narrativas” ou transformou tudo em realidade “líquida”.
Big Sentido não se insere em certo lirismo fatigado, pela consciência de quem rompeu também com o absolutismo do eu lírico, incorporando intertextualidades e fragmentos cortantes da realidade, que se transformam em linguagem na Rua da Criação, onde nascem poemas, canções e bananas ao vento.