O Brasil tem uma história rica e diversificada. Por isso, ao longo dos séculos, surgiram diversas rivalidades entre diferentes regiões, grupos sociais e culturas. Paulistas vs. Cariocas, Bahia vs. Pernambuco, Rio Grande do Sul vs. Santa Catarina são as mais emblemáticas.
Certamente muitos litígios surgiram dessas rivalidades, abarrotando ainda mais o sistema judicial brasileiro. Mas nada se compara com a disputa Piauí vs. Ceará pela Serra da Ibiapaba, que teve início ainda no Brasil Império e já completa 265 anos de indecisão.
No total, são 3 mil quilómetros quadrados de terras, o equivalente ao tamanho do Luxemburgo, e cerca de 25 mil pessoas afetadas, onde muitas sofrem sem saber a qual jurisdição pertence a morada, por exemplo. O processo está em tramitação no Supremo Tribunal Federal – STF.
Além disso, outro ponto sensível entre Piauí vs. Ceará é a disputa pela cajuína, uma bebida não alcoólica feita a partir do sumo do caju e com sabor único. Aqui, peço a atenção dos três leitores portugueses: no Brasil, caju é o pseudofruto suculento do cajueiro que não é conhecido em Portugal. Para os três leitores brasileiros: caju em Portugal é a castanha, facilmente encontrada nos supermercados.
De volta à cajuína, a disputa é latente e é sentida na reportagem “A caatinga vai virar terroir” (revista Piauí – Agosto/2023), que chega a questionar a cajuína como um Património Cultural e Imaterial do Piauí, título concedido pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Os fatos mostrados são verdadeiros: um farmacêutico baiano, erradicado em Fortaleza, registra a fórmula da cajuína na Junta Comercial do Ceará, no final do século XIX. O que eu desconfio é da narrativa que, a partir do fato, a bebida se incorpora à cultura do Nordeste.
Ora, num período onde a informação seguia no lombo de cavalos ou mesmo em viagens à pé, é improvável que a referida fórmula registrada se disseminasse rápida e exponencialmente, como fake news na internet, a todas as quintas e vivendas nordestinas que tivesse, pelo menos, um único cajueiro. Trazendo como consequência o hábito de manter estoque de cajuína na despensa para servir em momentos especiais como natal, aniversários ou numa visita ilustre.
Digo isso porque sou piauiense, filho de cearense e neto de produtora de cajuína. Cresci a saber que a receita era transmitida de geração em geração. Atualmente, a minha prima Ana Beatriz produz cajuína com a receita deixada pela nossa avó. Quando a campainha da casa dos meus pais tocava, era certeza que cajuína seria aberta. A mesma lógica de receber do Sr. Heli Nunes, que serviu cajuína ao cantor e compositor Caetano Veloso quando este visitou em Teresina. Logo depois, Caetano compôs a música Cajuína, também mencionada na reportagem.
Tendo conhecimento de que lado da Serra da Ibiapaba o meu coração está, afirmo que aqui não existe paixão. Pois qualquer aspirante a antropólogo sabe que aspectos culturais não são criados por decretos ou ordens. Eles desenvolvem-se ao longo do tempo organicamente, moldados pela história, interações sociais e muitos outros aspectos específicos, principalmente entre dois estados vizinhos que nunca conseguiram definir onde começa um e termina o outro.
Tudo isso é para mostrar que a cajuína realmente faz parte da vida do piauiense. E mesmo que naquela marcante tarde de 1976 tivesse acontecido o improvável do Sr. Heli servir uma taça de Champagne e Caetano tivesse cantado todos esses anos o refrão “A Champagne Borbulhante em Teresina”, garanto que a história não mudaria. Pois foi um hábito, transmitido de geração em geração, que destinou Teresina ser a capital mundial da cajuína!
Agora pergunto: Anything Else?