O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) recebeu alerta da Embaixada do Brasil na Índia sobre o patamar elevado de preço da Covaxin um mês antes de acertar com a Precisa Medicamentos, intermediadora do negócio, a compra de 20 milhões de doses da vacina produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech. O investimento é de R$ 1,6 bilhão.
O acordo com a Precisa é investigado pelo MPF (Ministério Público Federal), que identificou indícios de crime no contrato e suspeita de superfaturamento, corrupção, entre outras possíveis irregularidades. A CPI da Covid, no Senado Federal, também apura o caso.
Durante as conversas com a empresa, a diplomacia brasileira na Índia comunicou ao Ministério das Relações Exteriores que o custo da Covaxin estava em discussão no país da Ásia meridional. O governo do primeiro-ministro Narendra Modi era criticado por ter pago US$ 4,10 por dose —valor superior ao praticado na Europa em acordos por outro imunizante, o da AstraZeneca/Oxford.
A informação consta de ofício do Itamaraty enviado em 15 de janeiro à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), ao qual o UOL teve acesso. O documento foi repassado à CPI da Covid sob sigilo, mas acabou reclassificado e aberto por decisão da maioria dos senadores da comissão.
Em 25 de fevereiro, o Ministério da Saúde do Brasil aceitou pagar US$ 15 por dose (R$ 80,70, na cotação da época) no acordo com a Covaxin, e fechou a aquisição de 20 milhões de doses junto à Precisa Medicamentos, ao custo final de R$ 1,6 bilhão. Trata-se da vacina mais cara entre as que foram compradas pelo governo Bolsonaro até o momento.
Esse preço por dose estabelecido no acordo com o Brasil representa aproximadamente 1.000% a mais do que o valor que havia sido estipulado pela fabricante seis meses antes (US$ 1,34). De acordo com outro documento do Itamaraty enviado à CPI da Covid, esse custo seria, à época, inferior a uma “garrafa de água”. Em nota, a defesa do laboratório Barat Biotech alegou que a precificação segue uma tabela prefixada para o mercado internacional.
Em comparação com o que foi pago pela Índia, o governo brasileiro aceitou um preço com diferença de 270% por cada dose da Covaxin. A diferença entre os acordos foi de pouco mais de um mês —o programa nacional de imunização da Índia começou a ser executado em 16 de janeiro.
O UOL procurou o Ministério da Saúde e o Itamaraty para um posicionamento. Se houver manifestação das pastas, este texto será atualizado.
Contestada pelos próprios indianos
Além do preço mais alto da vacina, o Itamaraty enviou alerta ao governo brasileiro sobre questionamentos que ocorriam na opinião pública da Índia em relação à autorização para uso emergencial da Covaxin.
Em 3 de janeiro deste ano, o órgão de regulação sanitária do país asiático concedeu aval para as vacinas Covaxin e AstraZeneca/Oxford. As autoridades locais então passaram a cogitar começar a campanha de vacinação naquele país nas duas semanas seguintes.
No entanto, a rapidez e o modo como a aprovação se deu não convenceu a todos. As críticas pairaram especialmente em relação à Covaxin, autorizada para uso restrito “em modo de testes clínicos”.
O relato é feito por Breno Hermann, encarregado de negócios da Embaixada do Brasil em Nova Déli, em telegrama de 5 de janeiro deste ano. O teor da mensagem do diplomata foi encaminhado, na íntegra, no mesmo dia, para a Anvisa.
Ele relatou que a imprensa indiana levantou dúvidas devido à falta dos dados finais de eficácia para ambas as vacinas e ao processo “alegadamente opaco de deliberação dos órgãos oficiais, uma vez que não foram publicados os documentos que embasaram a decisão”.
Os dados apresentados pela Bharat Biotech para o aval não foram tornados públicos à época, por exemplo, diz.
Para parte da mídia indiana, a aprovação da Covaxin, “ainda não testada, quase impossibilitaria uma boa condução da fase 3 de testes” e a recusa das autoridades sanitárias em receber perguntas após coletiva de imprensa para o anúncio “teria sido uma oportunidade perdida para afastar dúvidas com relação à eficácia e segurança das vacinas”.
“Os periódicos repercutiram, igualmente, a desconfiança de especialistas em saúde quanto à rapidez do processo de aprovação, que poderia minar a confiança do público na segurança das vacinas e levar a problemas no processo de vacinação. Nessa linha, a declaração do ministro da Saúde sobre a eficiência da Covaxin no combate a mutações do vírus foi questionada pela Dra. Gagandeep Kang, vice-presidente da ONG Coalition for Epidemic Preparedness Innovations”, informa.
Aval da Anvisa e atraso na entrega
O governo Bolsonaro decidiu comprar as 20 milhões de doses da Covaxin antes que houvesse qualquer estudo publicado sobre a eficácia da vacina e antes da análise da Anvisa quanto à importação e possível aplicação do produto no Brasil.
Apesar dos esforços para que esse processo ocorresse com celeridade, a Anvisa negou o primeiro pedido de autorização para importação, em 31 de março —mais de um mês depois da assinatura do contrato.
Posteriormente, houve empenho por parte das autoridades e do fabricante para obtenção do aval. A liberação ocorreu em 4 de junho, de modo excepcional e com restrições por parte da Anvisa. A mesma decisão foi aplicada ao pedido de importação da vacina russa Sputnik V.
Foi decidido que a operação de importação deve abranger apenas quantidades predeterminadas de cada imunizante. No caso da Covaxin, 4 milhões de doses. Ao contrário da Índia, a Anvisa não autorizou o uso emergencial da vacina por falta de informações para a garantia de qualidade e segurança.
Apesar do aval da autoridade sanitária, até o momento, o Brasil ainda não recebeu nenhum lote com doses da vacina indiana. A previsão do Ministério da Saúde era que as primeiras doses chegassem ao país ainda em março. O atraso no cronograma de entregas também é um fato que será abordado pela CPI da Covid dentro da investigação acerca de possíveis irregularidades no acordo.
A Precisa Medicamentos, empresa que se apresentou como representante do laboratório indiano no país e conduziu todo o processo de negociação, deverá prestar esclarecimentos à CPI e ao MPF. O dirigente da companhia, Francisco Emerson Maximiniano, foi convocado para depor na CPI —ele seria ouvido no Senado nesta semana, mas o depoimento foi adiado porque ele cumpre quarentena após regressar de viagem à Índia.