O Brasil teve uma alta de 5% nos assassinatos em 2020 na comparação com 2019, após dois anos consecutivos de queda. É o que mostra o índice nacional de homicídios criado pelo G1, com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.
No ano passado, foram registradas 43.892 mortes violentas, contra 41.730 em 2019. Ou seja, 2.162 mortes a mais. Estão contabilizadas no número as vítimas de homicídios dolosos (incluindo os feminicídios), latrocínios e lesões corporais seguidas de morte.
O aumento de mortes aconteceu mesmo durante a pandemia do novo coronavírus e foi puxado principalmente pelo Nordeste, que teve um aumento expressivo nos assassinatos: 20%. É importante ressaltar que a região também foi a grande responsável pela queda de mortes nos últimos dois anos.
A região Sul também teve uma leve alta. Já nas outras regiões (Norte, Centro-Oeste e Sudeste), o número de crimes violentos foi menor na comparação com o ano anterior. A região Norte teve a queda mais acentuada: – 11%. Ao todo, mais da metade dos estados registrou uma alta. Houve aumento dos assassinatos em 14 unidades da federação.
Os dados apontam que:
houve 43.892 assassinatos em 2020, o que significa 2.162 mortes a mais que em 2019
a região Nordeste foi a principal responsável pela alta no país: 20% de aumento
o Ceará foi o destaque negativo, com um aumento de 81% nas mortes
14 estados apresentaram alta de assassinatos no período
4 estados tiveram altas superiores a 15%: Paraíba, Piauí, Maranhão e Ceará
a maior queda se deu na região Norte: -11%
o Pará foi o estado com a maior diminuição de mortes: -19%
O levantamento, que compila os dados mês a mês, faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O que dizem os dados
Para Bruno Paes Manso, do NEV-USP, variações bruscas nos indicadores, como as ocorridas nos estados do Nordeste principalmente, não costumam estar ligadas necessariamente a questões estruturais, como nível de educação da população, desigualdade, renda, entre outros fatores que costumam produzir efeitos de médio e longo prazo.
“Essas mudanças acentuadas podem ser mais bem compreendidas quando observados fatores circunstanciais em cada estado, como por exemplo: a dinâmica do mercado criminal e as decorrentes disputas entre grupos armados locais e a força política da autoridade estadual e sua capacidade de implementar políticas de redução da violência e de controlar os excessos e crimes praticados pela polícia”, afirma.
Para Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os números indicam que o país perdeu a oportunidade de transformar a redução dos homicídios verificada em 2018 e 2019 em um ciclo virtuoso.
Além da dinâmica do crime organizado e do fato de o Brasil ser uma importante rota de passagem para o escoamento da cocaína para a Europa, o que tem ampliado os conflitos, eles apontam leis e decretos que afrouxaram o controle de armas como um agravante para o cenário da violência.
“Reverter este cenário passa pelo investimento em recursos humanos e financeiros, como em qualquer política pública, mas também pela adoção de medidas já largamente documentadas como efetivas em outros contextos”, afirmam.
“É evidente que o trabalho policial, políticas de prevenção, investimento em investigação e um modelo de atuação mais estratégico, com integração entre as diferentes agências e investimento financeiro, são e foram importantes para redução dos níveis de violência em vários estados. Mas dados da execução do Fundo Nacional de Segurança Pública indicam que, mesmo com mais recursos financeiros, o país não conseguiu frear a escalada da violência.”
Ceará: além do motim
Após um ano de queda, o número de mortes violentas no estado do Ceará disparou: passou de 2.235 em 2019 para 4.039 em 2020. Ao contrário de outros estados, o isolamento social estimulado pelas autoridades por conta da pandemia da Covid-19 não impediu o aumento das mortes em nenhum dos 12 meses.
Uma das causas deste aumento, segundo especialistas, é o motim dos policiais militares que ocorreu há um ano, em fevereiro de 2020. Durante os 13 dias da greve policial, houve 312 homicídios, uma média de 26 por dia. Antes, a média era de 8 por dia. Mas o fato não é o suficiente para explicar, por exemplo, o aumento de 105% em abril, no primeiro mês das medidas de isolamento social no estado, afirmam os estudiosos.
Segundo Ricardo Moura, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, fevereiro e abril foram os meses mais violentos desde o início da série histórica, em 2013.
Diferentes causas explicam o fenômeno, segundo Moura, entre elas as disputas territoriais das facções criminosas. Um exemplo é o assassinato do coroinha Jefferson Brito Teixeira, de 14 anos, morto em Barra do Ceará, em Fortaleza, em agosto. A Área Integrada de Segurança que o bairro integra teve a maior queda em 2019 e o maior aumento do estado em 2020.
Segundo o Ministério Público, o rapaz foi morto devido a três cortes que tinha na sobrancelha. Os envolvidos no crime acreditaram que os cortes simbolizavam uma facção criminosa rival. Um funcionário da paróquia, porém, diz que o rapaz não tinha envolvimento com crimes e que o bairro vive com medo, sob o controle de facções criminosas.
“Aqui hoje o bairro é dividido por facções. A paróquia fica numa região comandada por uma facção. Aqui pertinho, a apenas duas quadras, já é de outra. Aí fica a confusão. Não podemos nem atravessar a rua. Não conseguimos realizar nosso trabalho de maneira perfeita por conta da violência”, desabafa.
Outro motivo para o aumento nos registros, segundo Moura, é que a polícia tem trabalhado no limite com seu efetivo e tem priorizado as áreas ricas e turísticas. Com as demissões após o motim e a necessidade de fiscalização durante o período de isolamento social, a polícia ficou sobrecarregada, reduzindo sua capacidade de controlar essas tensões latentes, seja das disputas do crime organizado, seja de brigas entre cidadãos, afirma.
“Sem policiamento e com as ruas mais vazias, a possibilidade de se tirar a vida de alguém e não ser investigado é muito grande”, avalia o pesquisador.
Nos meses em que foi iniciada a retomada das atividades, de junho a setembro, observa-se um crescimento menor do que o resto do ano. Já em outubro, com a campanha eleitoral, o número de assassinatos volta a aumentar, por conta de disputas locais violentas, principalmente nas cidades menores. “No último trimestre, houve pelo menos uma chacina grande, de cinco pessoas, nas cidades do interior”, aponta Moura. Segundo ele, a curva de mortes violentas sobe de forma parecida em 2016, também ano de eleições municipais.
Por fim, afirma Moura, é preciso levar em conta a comparação com os baixos números de 2019, ano em que houve uma redução de conflitos entre facções criminosas. “Houve um arrefecimento dos conflitos porque ele antecedeu dois anos de confrontos intensos. Então, uma hipótese é a de que os recursos escassearam. Além disso, operações de inteligência da polícia conseguiram realizar uma asfixia financeira da GDE [Guardiões do Estado], que tirou a capacidade do grupo de atuar – abrindo caminho para o Comando Vermelho tomar conta de novas áreas.”
Pará: acomodação do crime organizado
Já o Pará foi o estado com a maior queda no número de mortes violentas em 2020: 543 assassinatos a menos, uma variação de -19% em comparação com 2019.
Segundo o pesquisador Aiala Couto, da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há duas forças hegemônicas que influenciam a queda dos índices de criminalidade: uma relacionada ao Estado e outra relacionada à atividade ilícita, sobretudo ao narcotráfico.
“Hoje temos uma presença maior da Polícia Militar nas ruas e também tivemos várias prisões de grupos milicianos que promoviam execuções de forma descontrolada na periferia, que atingia principalmente a população jovem negra”, explica Couto.
No entanto, ele aponta que, a partir de pesquisas empíricas nos bairros de Belém, nota-se uma mudança na organização do crime, que se aproxima do modelo seguido por facções de São Paulo e do Rio de Janeiro.
“Os bairros onde houve uma redução das mortes violentas foram os mesmos em que o tráfico de drogas impôs um modelo de organização proibindo assaltos, brigas de vizinho e de marido e mulher. Mas os dados [da Secretaria de Segurança] não mostram essa dinâmica”, diz o pesquisador, que dá como exemplos os bairros Terra Firme e Barreiros, em Belém.
Ele pondera, porém, que o Pará é uma área importante na rota do tráfico e, portanto, de interesse dos grandes grupos criminosos organizados. Por isso, pode ser que haja conflitos futuramente. “Ainda estamos em uma dinâmica de redução dos dados de criminalidade, mas a quantidade de droga apreendida cresceu de forma significativa”, afirma Couto.
Índice nacional de homicídios
A ferramenta criada pelo G1 permite o acompanhamento dos dados de vítimas de crimes violentos mês a mês no país. Estão contabilizadas as vítimas de homicídios dolosos (incluindo os feminicídios), latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. Juntos, estes casos compõem os chamados crimes violentos letais e intencionais.
Jornalistas do G1 espalhados pelo país solicitam os dados, via assessoria de imprensa e via Lei de Acesso à Informação, seguindo o padrão metodológico utilizado pelo fórum no Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
O governo federal anunciou a criação de um sistema similar ainda na gestão do ex-ministro Sergio Moro. Os dados, no entanto, não estão atualizados como os da ferramenta do G1.
Os dados coletados mês a mês pelo G1 não incluem as mortes em decorrência de intervenção policial. Isso porque há uma dificuldade maior em obter esses dados em tempo real e de forma sistemática com os governos estaduais. O balanço de 2019 foi realizado dentro do Monitor da Violência, separadamente, e foi publicado em abril. O do primeiro semestre de 2020 foi publicado em setembro. O fechado do ano de 2020 ainda será divulgado.