Há quem diga que o período entre 1922 e 1930 foi de grande desenvolvimento da poesia modernista no Brasil. Entre 1930 e 1950, o auge do romance, sobretudo o que se chamou Romance de 30 ou Romance do Nordeste. Da década de 1950 à de 1970, a explosão do conto. Isso não deve ser tomado ao pé da letra. A crônica e outros gêneros artísticos sequer estão aí. Mas, como esquema, embora questionável, serve para nos situar.
Parece razoável afirmar que após a 2ª Grande Guerra, houve desenvolvimento excepcional do conto no Brasil. Em ensaio publicado na revista Veja, em maio de 1979, o crítico literário Wilson Martins afirmou, não sem uma ponta de ironia, que o Brasil era “o país dos contistas”. Isso coincide com o período em que o país experimentou crescimento da indústria e expansão urbana. Houve no período movimentos culturais inovadores, como Bossa Nova, Poesia Concreta e Tropicália, deflagrados nas duas principais metrópoles urbanas do País.
Na década de 1970, o Piauí recebeu bafejos da modernização. Teresina, a capital, experimentou um surto de crescimento engendrado pelo Milagre Brasileiro. Foi a época dos primeiros grandes conjuntos habitacionais construídos na periferia da cidade. Num deles, o Parque Piauí, estabeleceu-se uma família vinda do interior de Oeiras, da qual fazia parte um menino chamado João. No final da década de 1970 – não era mais menino – foram publicados seus primeiros contos em coletâneas literárias.
O primeiro conto de João Luiz Rocha do Nascimento foi publicado no livro Ô de Casa!, editado por Cinéas Santos, em 1977, que se tornou o grande editor de autores piauienses, durante pelo menos trinta anos de existência da Livraria e Editora Corisco. Outro conto seu foi publicado em 1979, no livro que reuniu quinze autores premiados no I Concurso Nacional de Contos de Varginha (MG). Voltando ao Ô de Casa!, é bom dizer que os participantes eram homens. A literatura no Piauí era território masculino. Felizmente, isso mudou.
As primeiras produções de J. L. Rocha do Nascimento possuíam características que permanecem em larga medida na sua obra até hoje. Seus primeiros contos se passavam em ambiência urbana com personagens deformados pela opressão econômica ou psíquica, ou melhor, pelas duas juntas. Sua opção assinalou ruptura com o conto rural, então predominante no Piauí, do qual Fontes Ibiapina era um dos principais representantes.
Começando a escrever numa idade boa de começar, J. L. Rocha do Nascimento foi escritor ativo nos primeiros anos de sua juventude. A paixão pelo conto o fez juntar-se aos amigos José Pereira Bezerra, Aírton Sampaio de Araújo e Manoel de Moura Filho, que tinham projetos literários semelhantes e encaravam o conto com grande entusiasmo, pelas possibilidades criadoras. O quarteto pariu o Grupo Tarântula de Contistas.
Depois desse início alentador, J. L. Rocha do Nascimento dedicou-se aos trabalhos profissionais e deixou de escrever. Felizmente, ressurgiu em 2019 com seu primeiro livro solo de contos, Um Clarão Dentro da Noite, do qual fazem parte alguns contos anteriormente publicados em jornais e coletâneas, como o reescrito Novela Liberada Para Este Horário, da estreia no Ô de Casa!
Um Clarão Dentro da Noite traz um escritor amadurecido, crítico, de uma ironia corrosiva. Em contos como O Anjo Vingador e Folha Seca, ódio e violência tem endereços certos. Parecem ressoar Rubem Fonseca. As intertextualidades com a literatura e outros gêneros artísticos conferem charme às narrativas e ampliam significados. Jim Morrison Sobe aos Céus é um conto herético, sem enredo.
Depois de Um Clarão Dentro da Noite, vieram Os Pés Descalços de Ava Gardner (2020), Morangos Silvestres e Outros Contos Eróticos (2022) e Na Caverna de Platão e Outros Contos Breves, que o autor acaba de lançar. Nesses livros, ele aprimorou sua escrita, manejando repertório de técnicas a serviço de criar narrativas e inventar personagens quase sempre deformadas, obsessivas, humanas.
Aparentemente, escrever contos curtos é fácil. Usar poucas palavras, sem prejuízo da ficcionalidade e do interesse estético é tarefa para mãos (e cabeça) hábeis. Não muitos o conseguem. Além disso, como se trata de conto, é preciso levar leitoras e leitores a nocaute, para usar o mandamento de Julio Cortázar, escritor argentino, que, além de escrever contos, teorizou, como fez também Edgar Allan Poe.
Esse negócio de nocautear quem lê não é cruel? O mundo é cheio de aleivosias. A literatura, o conto, não poderia ser refúgio? Aí está o problema: as literaturas ditas moderna e contemporânea são problematizantes. E o conto parece ser o mais problematizante dos gêneros. O mais cruel.
Na Caverna de Platão e Outros Contos Breves possui as principais características, aprimoradas, que o ficcionista revelou nos primeiros contos. As intertextualidades, explícitas e implícitas, são parte fundante desse novo livro. A lista de autores referenciados é longa, não só da literatura, mas do cinema, da música, das artes plásticas. A mitologia grega, a começar pelo título, ocupa lugar fundamental e é parafraseada ou parodiada, sempre com ironia corrosiva, a serviço da trama das narrativas, cuja intencionalidade crítica é tão demolidora que não há final feliz.
Por que isso? Os contos de J. L. Rocha do Nascimento são “narrativas enviesadas”, ocorrem em linhas e entrelinhas que se cruzam, nunca lineares, claras, fechadas em si mesmas e com desfechos previsíveis. Fustigam leitoras e leitores com pequenos ou grandes enigmas dentro da prosa labiríntica. Provocam o efeito incômodo do “perturbamento”.
Na Caverna de Platão, por exemplo, conto de abertura, a personagem é deformada como um bufão jactancioso, “uma espécie de troglodita, pestilento e grosseiro, expressando-se numa linguagem confusa”. Aos pares exaltados ele insiste na “objetificação das coisas, dando-lhes números ao invés de nomes”. A semelhança com a realidade não é coincidência. A triste lembrança de personagem da história contemporânea do país completa-se no conto seguinte, Tártaro: no portal do inferno, o genocida é advertido por Hades a não entregar moedas falsas a Caronte, o barqueiro sinistro.
O vigor do ficcionista encontra nos pecados capitais terreno fértil para a crítica mordaz de tipos humanos e até de Zeus, pois nem mesmo os deuses escapam. Sentindo insuficientes os sete pecados que a tradição legou, o autor criou mais um: a mentira, por razões óbvias, claro. Mitos gregos, tão caros à soberba ocidental, não ficam a salvo da impiedade do escritor, que apresenta Ulisses, nada menos que em oito versões, dizendo que foi tudo mentira.
Não poderiam faltar Na Caverna de Platão os contos eróticos. O contista não perde o prumo quando a carne das personagens queima por dentro. Risca de giz é um conto insinuante, todo em discurso direto, sem os famosos verbos de alocução. Em Aracnídeo, o adolescente aficionado em quadrinhos fica desorientado após a mulher negar-lhe um beijo, mandando-o cuidar das espinhas. O mesmo discurso direto, constitutivo também de Tártaro, é perfeito em Sétimo Selo, em que o autor, mais uma vez, se rende à intertextualidade com o filme homônimo do cineasta sueco Ingmar Bergman. Outra intertextualidade marcante está em A História Circular, em que o narrador em primeira pessoa se identifica de tal maneira com Borges que diz: “Eu sou ele e ele é um dos vários de mim”.
As subjetividades, solitárias e dilaceradas, são mais evidentes nos contos finais do livro:
Movimento em Ritmo Melancólico e Meio Depressivo: “Nenhum caminho, nenhum carinho possível. Apenas uma certeza: a noite será de longa agonia”.
Amanhã, Talvez, Com Certeza, Não Sei: “Eu só preciso de um tempo, antes que me arranquem o coração”.
Nova Canção do Exílio: “Há um vazio crescente dentro de mim. E ele avança, sem dó”.
Último Round: “Fico imaginando quanto tempo terei de lucidez entre o tiro de misericórdia e o suspiro final”.
Por que J. L. Rocha do Nascimento escreve esses contos de farpa? Suas narrativas curtas são a “síntese implacável de uma certa condição humana”, como queria Cortázar, referindo-se ao conto em geral? A pista está em Rota de Fuga, epígrafe do próprio autor ao livro, a qual serve também para leitoras e leitores que procuram o sentido das coisas:
Escrevo para chegar perto de mim.
Nem sempre consigo.
Às vezes, quando acho que estou
perto, escapo entrelinhas.